Quase um mês depois de perder o contato com o Tomás, recebo uma mensagem enquanto estava na cama vendo alguma coisa no celular.
"Oi Cecília, como você está?"
Um misto de alívio por voltar a ter notícias dele com apreensão. Aquela frase não era a que eu estava à espera, tão seca, como se fosse de uma pessoa que você não tem muito contato nem muita intimidade.
"Oi...tou indo e você?"
"Também", ele respondeu, perguntando se eu não queria falar mais com ele. Eu? Ele foi quem bateu com a porta na cara da escoteira, lembra? Foi quem disse que achava que não devíamos continuar e isso parecia incluir tudo: viagens, telefonemas, mensagens. Eu ainda queria tudo. Eu não tinha certeza de onde isso tudo iria levar, mas nunca duvidei do que sentia nem do que eu queria. E queria continuar o que tínhamos. Sentia falta do Tomás de há 23 anos e do Tomás de há 2 meses. Esse era outro Tomás que não queria me incluir mais na sua lista de contatos quanto mais da sua vida.
"Como está a sua mãe?"
"Melhor do que eu", respondi-lhe. Afinal ele queria saber da minha mãe. A minha mãe tinha uma doença grave. O que podia ser feito, estava sendo feito. A minha doença era emocional. O que poderia ser feito não estava sendo. Eu já não me alimentava direito, o meu alimento era ele, o seu corpo e alma. Eu era o seu câncer, ele não me queria mais se espalhando na sua vida.
"Fico sem saber se eu faço bem ou mal entrando em contato com você", ele disse. Os efeitos colaterais do seu sumiço, distância e frieza é que eram muito maus.
Trocamos mais uma vez algumas confidências mais ligeiras sobre como tinham sido aqueles longos dias, quase um mês na verdade, sem nos falarmos.
"Tenho pensado muito em você", disse-me. Eu já não conseguia acreditar. Os seus atos diziam o contrário. Eu só tinha essas palavras agora manchadas por dois episódios de consciência dele. Eu queria acreditar, mas ele não me dava provas concretas disso.
Já eu acabei dando provas sem querer. Postei uma foto minha com um amigo que me acolheu num dia em que eu não aguentei e disse "estou uma merda". Ele prontamente disse "bora sair". Foi uma das poucas fotos que postei nos últimos tempos, uma forma de agradecer por "estar aqui" quando eu mais precisei. A foto não cortou completamente a pulseira verde que ainda usava no braço.
Ele disse ter visto a foto, reparado nessa falha e que "chorou como uma menina". Que escutou a playlist que eu tinha feito ainda nos primeiros dias juntos, quando ele queria conhecer o que eu gostava de ouvir atualmente. Tínhamos até uma música. Era uma música que falava num encontro onde dois corpos se encostam e uma dança arranca mas sem final feliz. Depois da nossa primeira despedida o Tomás sugeriu arranjarmos outra música mais esperançosa para nós. "Você e eu juntos podemos fazer qualquer coisa, arrume a sua mala e vamos sair pelo mundo". Era a nossa pré-lua-de-mel no Peru. A nossa vontade de fugir da nossa realidade.
Agora não sabia que música nós tínhamos, se é que ainda tínhamos. Algumas me surgem na mente mas nenhuma tem a letra que queria.
Eu estava voltando a ser aquela pessoa discrente. Eu queria acreditar no que ele dizia...que não conseguia passar pelos lugares onde estivemos, que estava pensando muito em mim... mas parecia que ele estava descrevendo apenas o que eu sentia.
"Queria muito uma oportunidade de poder viver o que eu queria ao seu lado". Eu também queria. Quantas vezes não me questionei as decisões que tomei na minha vida. Vivo sempre num "What if", mais um título de um filme que agora me faz lembrar dele também. Já não bastassem todas as músicas de amor, agora eu me lembrava dele em filmes. Também em placas de carro que param à minha frente no trânsito. Dos 26 estados brasileiros, apenas 2 de fora da minha cidade parecem surgir à minha frente nessas placas: onde ele mora e de onde ele é.
Eu, mais uma vez, não escondia o que sentia. Disse-lhe que tinha saudades da ligação de bom dia, das mensagens antes de almoçar, depois de almoçar, até as conversas safadinhas. Essa foi a deixa para que a conversa aligeirasse e se prolongasse madrugada afora...
Depois dos "episódios" de consciência do Tomás, as conversas, por vezes tomavam um rumo tenso, desagradável, com os questionamentos inerentes à nossa situação. Eu evitava, mas quando via já tinha ido praquele caminho. A vontade que dava era, "vamos voltar à conversa a partir do minuto x?"
Pra que questionar e analisar racionalmente a nossa situação, ainda por cima por mensagem? Odeio mensagens para conversas sérias. Odiava essas conversas sérias. Pra que sermos sempre racionais? Às vezes temos que nos permitir a apenas sentir. Viver.
A confissão da saudade das conversas safadinhas revelada já em horário para adultos soltou-nos mais um pouco. Aligeirou a conversa que teve o seu início pesado pelos dias de silêncio.
A vontade de nos vermos novamente parecia ainda mútua. Mas ele disse "mais uma vez". Os assuntos foram surgindo e isso ficou em stand-by. Contamos os sonhos que tivemos um com o outro e ficamos tentando analisar o que poderiam significar. O sonho do Tomás era recorrente. Já devia ser a terceira vez que acontecia e o perturbava. Ao mesmo tempo deixava-lhe excitado.
O seu sonho consistia basicamente em eu transar com outro homem na sua frente, humilhando-o ao ponto de forçá-lo a transar comigo depois jogando na sua cara que outro tinha acabado de estar ali dentro de mim. "Agora é a sua vez", eu diria. Eu não me imagino tendo esse comportamento na vida real, apesar de que a sua recorrência, a excitação e ciúmes que provocaram nele me deixaram intrigada. Em parte, qualquer desejo que ele tenha quase que se torna automaticamente meu ou, no mínimo, eu deixo na gaveta para consideração. O Tomás é o meu dono. Eu tenho um lado nativo de submissão ao lado dele. Esses papéis em breve iriam se alterar temporariamente, pelo menos.
Enquanto isso, contei-lhe sobre o meu sonho. Os meus sonhos geralmente têm uma carga simbólica muito grande, mas por vezes consigo decifrá-los. O sonho que tive e que partilhei com ele naquele dia era ele com ela, representados fisicamente por outras pessoas. Isso eu tinha mais nitidamente certeza no caso dele. A pessoa encarnada naquela cena era um ex meu que, resumidamente, tinha me iludido, levado pra cama e depois sumiu. Ele também era um amigo antes de nos envolvermos mas não tínhamos uma história como o Tomás e eu. Não tinha, da minha parte, o desejo que eu tinha do Tomás. Mas éramos amigos há uns 4 anos, achei que acima de tudo ele iria respeitar a amizade que tínhamos. Estava eu a compará-los por conta do seu sumiço? Eu conscientemente não queria compará-los até porque não achava que o Tomás faria uma coisa dessas. A nossa amizade era de décadas, mesmo com um interregno no contato, era longa. Havia um passado mal resolvido, um futuro por resolver. E eu queria que aquele presente não se assemelhasse ao que já passei com outra pessoa que se dizia minha amiga.
Ao partilhar uma das poucas fotos que tiramos juntos, a de São Paulo, ele comentou que estaria em Santos no fim do mês. Eu estaria em São Paulo no fim do mês! Sem combinarmos nada, o universo parecia querer conspirar ao nosso favor. Não só iríamos estar em São Paulo na mesma altura, como também outra viagem programada para Brasília era quase coincidente. De São Paulo para Santos é 1h de ônibus. Em Brasília a diferença seria de dias. Acho que posso dizer que é bem plausível. Se o destino queria dar uma mãozinha, por que não esticarmos a outra? Tudo é uma questão de vontade. "Quando se quer, arranja-se uma maneira. Quando não, dá-se uma desculpa". O Tomás não conhecia esse ditado, mas já o tinha visto e utilizado na prática antes.
Cecília e Tomás - O (re)encontro
Cecília e Tomás - 5. Testando limites
Cecília e Tomás - 6.Reviravolta