Enviei as 11 partes do meu conto, até então escritas, para o Tomás. Não sei se ele vê o email com frequência, mas revolvi avisá-lo. Era mais uma mensagem para enviar. A última. Já tinha gasto as minhas cotas de iniciativa da semana, talvez da quinzena.
Mais tarde, talvez melindrado por assistir à sua primeira cirurgia cardíaca de peito aberto em 11 atos, pediu desculpas por estar cansado do esforço que tem feito para ver a família depois do trabalho e que depois conversávamos com calma. Eu, ainda em pós-operatório, encontrava-me medicada naquele momento. Uma dose pequena de mensagem era injetada no coquetel.
Olho para o medicamento novamente e leio "conversar" e não "falar". Terão o mesmo composto? Poderão dar a mesma reação?
Eu converso com ele através desse conto. É uma conversa sem resposta. Um monólogo, na verdade. Mas não queria buscar nem que ele buscasse respostas pra tudo também, há coisas que não se explicam e eu não queria nenhuma explicação lógica que conflitasse com aquele sentimento.
Essa cirurgia de peito aberto poderia ser traumática para o Tomás se não tivesse estômago pra isso. Se fosse traumática no mau sentido, para além de estômago, eu descobriria que ele também não tinha coração. Era um risco...mas achei que tinha que me abrir de corpo e alma para ele (mais do que eu já o tinha feito), como se fosse aquele condenado no corredor da morte pedindo clemência. Só esperava que ele não considerasse a injeção letal como um gesto de caridade. "Não matarás", está na Bíblia. É um pecado mortal.
O Tomás me manda mensagem de bom dia no dia seguinte, mas avisa que está com muito trabalho. "Peço que me dê um tempo para falar com você. Depois de tudo que li ontem, fiquei bem mexido. Mais tarde, com calma a gente conversa."
A criança que não podia mexer em nada na loja, agora esperava a mãe chegar em casa para ter uma conversa. Não gostava daquela última frase. Fui reler o que tinha escrito como uma Anaïs Nin fajuta para ver que merda eu tinha feito. Não sabia.
Estou no Uber, lendo e mandando emails quando uma música familiar toca na radio. Eu, sem me concentrar nela, só ia acompanhando o seu ritmo quando me apercebo da letra "Do you really want to hurt me...do you really want to make me cry"... Agora não eram só músicas de amor e filmes, eram também músicas de separação e mágoa que me lembravam o Tomás.
Percorria de carro agora o caminho que tínhamos feito a pé ao longo da Paulista. Abro a janela para ver se ainda sinto o seu cheiro ao passar por aquele Casarão antigo lindo onde paramos por largos minutos para apreciar.
Desci justamente na calçada onde outrora um artista de rua começou a tocar a música do Tomás, logo quando íamos passando de mãos dadas. Eu ligo muito para simbolismos e acredito que nada é por acaso. Naquele momento, parei e quase chorei ao ouvi-lo tocar. O Tomás não deve ter percebido, eu disfarcei mas, pra mim, era como se o universo estivesse compactuando com o nosso (re)encontro, com o nosso momento dizendo "toma lá a tua trilha sonora".
A música que chamo "do Tomás" é uma do Led Zeppelin. A primeira vez que a escutei foi em 95. Eu estava na república onde morávamos, em pé no meu quarto, debruçada na janela como costumava fazer quando falava com o Tomás. Ele morava no anexo de frente para o meu quarto, e ficava também em pé na janela do lado de fora ou sentado no pátio conversando comigo. Separados por uma grade. Cheguei a pensar uma vez, naquela época, que estava numa masmorra ou era a Julieta no balcão. O Tomás era o meu Romeu, ou melhor, o meu escudeiro que me acompanhava de braço dado até a segurança de casa por onde quer que tivéssemos andado antes.
Não sei quantas vezes ouvi aquela música, mas nesses 23 anos sempre que ela tocava em algum lugar, eu me lembrava dele. E 23 anos depois, ao nos reencontrarmos, um estranho começa a tocá-la na rua justamente quando passamos...
O caminho de volta à casa da minha amiga é feito percorrendo pelos lugares que passamos novamente. Dessa vez o Trianon e o Masp.
Cruzo a rua que dava para o nosso hotel. A vontade que dava era de parar ali mesmo, descer e ir até lá, voltar no tempo onde praticamente não tinha "n"s nos nosso pontos de tesão. E que tesão foi São Paulo...A vontade era de voltar àqueles dias de sexo intermináveis, de voltar àquele beijo com a boca borrada de batom vermelho, àquela semana na minha cidade, ao St. Patrick onde a dança acordou, voltar à cidade onde nos conhecemos e deixamos os sentimentos adormecidos com os pontos dos "i"s por colocar...
"Até as nossas mãos dadas faziam amor em público". O Magiezi nos descrevia por aquelas ruas e por tantas outras que andamos em cidades alheias, de mãos dadas. A sua mão grande, como todo ele, segurava a minha e eu sentia que podia ir pra qualquer lugar. Até me esquecia que estava na cidade maravilhosamente perigosa. Era uma cidade como outra qualquer, estando com ele.
Cecília e Tomás - O (re)encontro
Cecília e Tomás - 5. Testando limites